Marcus Valério Saavedra Guimarães de Souza é Advogado especializado em Direito Penal e Processo Penal e Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil. Membro Associado da Associação dos Criminalistas e Academia de Júri do Estado do Pará.
CESARE BECCARIA, homem de grande visão e extraordinário intelecto, fortemente influenciado pela teoria de ROUSSEAU, construiu as teses objeto do presente artigo. Mas nem o Mestre iltaliano, que nasceu e viveu na Europa do século XVIII, seria capaz de prever como se daria a evolução das sociedades no mundo moderno.
As bases contratualistas de BECCARIA sugerem que ao ordenamento jurídico-penal – implementador de condutas e sanções – preexiste um contrato social que vincula indelevelmente os indivíduos entre si e estes com a sociedade, em pactos mútuos que se revelam úteis à maioria. Esse Tratado Social reina soberano acima de todas as cabeças e todos, indistintamente, devem temê-lo.
Procuremos, então, vislumbrar de que forma o contrato social é traduzido na sociedade brasileira atual.
A criminologia hodierna revela, com meridiana clareza, que o crime é um fenômeno sóciopolitico, advindo da conjugação de fatores sociais, tendo o Direito Penal ínfima capacidade de influir sobre eles. Inútil tentar evitar certas ações tornando-as delituosas, não sendo possível ao Direito Penal a solução plena do problema da criminalidade.
Concentremo-nos na primeira parte dessa assertiva, a fim de mensurar-lhe a veracidade.
Como explicar o recrudescimento da criminalidade violenta na sociedade brasileira hodierna?
Como atribuir a um povo pacífico a banalização da vida humana?
De que modo justificar a indesejável estatística de 31 homicídios para cada 100.000 habitantes?
Não prefere o espírito do povo brasileiro a resolução pacifica de suas escaramuças ao despotismo físico? Por que, então, a violência tem atingido índices estratosféricos, que tornam a vida do homem médio absolutamente insuportável?
A criminalidade se configura um dos fatos de maior complexidade na história da evolução humana. Como surgiu? De que forma prosperou entre os indivíduos? Como passou de circunstância isolada a fenômeno social moderno? Todas essas indagações restam dissecadas e esgrimidas nas teses formuladas sobre o crime.
No Brasil, procura-se entender o fenômeno a partir do que existe de mais evidente em nossa estrutura social: o colossal contraste que impera no ventre do corpo social e que pode ser traduzido pela existência de dor e prazer, felicidade e miséria, sendo apenas alguns poucos destinatários fixos de ventura; a grande maioria o é de tragédia.
O que pode explicar melhor a crescente criminalidade do que as inaturáveis diferenças sociais que, hoje, preferem a máxima dar a cada um o que é seu ao princípio dar a cada um conforme sua necessidade? Que visão pode operar melhor exegese da formação do fenômeno criminal do que as legiões de miseráveis que saem dos campos, tornando insuportáveis as estruturas urbanas?
BOLIVAR LAMOUNIER, citando ROBERTO POMPEU DE TOLEDO, manifesta-se brilhantemente sobre a questão, verbis:
Pior que a desigualdade em si, que apesar de não ser o único, é o fator decisivo para efeitos de desencadeamento da criminalidade, é a desigualdade num tempo em que acreditar na justeza e na fatalidade das coisas é tão fora de moda como acreditar no direito divino dos reis.
Não foi tal descrença que precipitou o movimento que se tornou historicamente conhecido como Revolução Francesa? Não seria o crime a revolução que se opera na sociedade injustiçada, apenas em moldes diferentes aos daquela ocorrida na Europa?
O tempo atual é de denúncia das facilidades, das fatalidades e das hipocrisias, bem como das ingenuidades que nutrem. Ocorre que este é também o século da força irresistível da democracia, ou pelo menos da idéia de democracia, desta sua filha incômoda, a igualdade. O século da comunicação veloz da televisão e do apelo embriagador ao consumo.
O Brasil foi apanhado entre dois focos. Tem cabeça no Ocidente e corpo na Ásia. Ou, por outra, rege-se pelo ideal ocidental de desenvolvimento, liberdade e individualidade, mas a sociedade encontra-se mergulhada numa estrutura de subcontinente indiano. E como ficam os indivíduos diante da ambígua situação que a um só tempo lhes informa das maravilhas da democracia, dos avanços tecnológicos e do prazer de consumir e, por meio de um sistema excludente, nega-lhes um bem-estar mínimo?
Em verdade, os criminosos que matam sem motivo aparente apresentam um quadro de impotência patológica. Transformam suas frustrações em sadismo. Somente quando matam alguém, desfrutando uma sensação de poder, sentem-se vencedores. Penso que a criminalidade violenta, a qual se traduz pela selvageria do miserável contra o apaniguado, é forma de protesto e reação à estrutura de poder que perpetua e aumenta os abismos sociais. Sim, porque se a questão fosse tão-somente de sobrevivência, seriam os delitos patrimoniais bastantes para reduzir as diferenças do binômio dor-prazer.
O que explica, então, a prática de atos de truculência e barbárie contra os semelhantes? Parece tratar-se de uma mecânica determinista o que impele os nossos patrícios ao crime. Pode-se, contudo, tomá-la como regra? Embora a lei de causa e feito seja proverbial, nem sempre uma situação de extrema miserabilidade leva o indivíduo ao crime. Muito mais lógico seria concluir que ao homem detentor de um presente miserável e certo de um porvir sem dignidade e esperança afigure-se o crime uma forma de mitigar a sua dor. A conduta criminosa torna-se, portanto, meio de recuperar parte da felicidade que lhe é subtraída e que, afinal, é o fim precípuo do contrato social – assegurar segurança e liberdade a todos.
Os pactos sociais, que na concepção de Rousseau devem afigurar-se úteis à maioria, acabam por efeito contrário, a exemplo do que demonstra o contingente de seres absolutamente miseráveis espalhados por este país.
De 150 milhões de brasileiros, 16 milhões vivem abaixo das condições mínimas necessárias a uma sobrevivência digna. Percebendo apenas o salário mínimo, não corporificam o conjunto dos que vivem decentemente e assim por diante, até que se verifique o desprezível percentual dos que retém a grande parcela da riqueza nacional. É diminuta a parcela daqueles que empregam seus esforços na formação de um corpo legislativo que traduza em lei o contrato social.
CESARE BECCARIA opera tal exegese ao afirmar:
Consultemos a história e veremos que as leis, que são ou deveriam ser pactos entre homens livres, não passaram, geralmente, de instrumentos da paixão de uns poucos, ou nasceram da necessidade fortuita; jamais foram elas ditadas por um frio examinador da natureza humana, capaz de aglomerar as ações de muitos homens num só ponto e de considerá-las de um único ponto de vista: a máxime felicidade compartilhada pela maioria. Felizes as raras nações que não esperam que a lenta evolução das circunstâncias e das vicissitudes humanas conduzisse ao bem após ter atingido o mal extremo, mas que por meio de boas leis aceleraram as passagens intermediárias.
Todavia, seria possível que boas leis acelerem as passagens intermediárias de infelicidade e infortúnio? O próprio Mestre italiano ajuda a elucidar a questão:
Devemos admitir que os homens que renunciam ao seu despotismo natural tenham dito; que o mais industrioso tenha as maiores honras e que sua fama resplandeça nos seus sucessores; e quem é mais feliz e honrado tenha maiores aspirações, mas não tema, menos que os outros, violar aqueles pactos por meio dos quais se elevou acima deles.
Cabe, porém, indagar de que modo se formaram os homens afortunados deste país. Teriam as grandes oligarquias se estabelecido pela industriosidade de seus representantes? Se a busca por "honra e fama" deu-se desde o princípio em condições de desigualdade, e não pela industriosidade dos indivíduos, pode a lei não ser mais do que a cristalização das desigualdades sociais. Afinal, configuram-se as leis instrumentos de degeneração do pacto social, por codificar equivocadamente os termos da contratualidade?
BECCARIA propõe que não basta construir o depósito das liberdades individuais renunciadas, é mister defendê-lo das usurpações privadas de cada homem em particular, o qual sempre tenta não apenas retirar do depósito a porção que lhe cabe, mas apoderar-se da dos outros. Tal defesa consiste nas leis.
Sendo as leis produto de diferenças sempre existentes, é possível que o corpo político defenda com igual empenho o depósito das liberdades renunciadas contra os excluídos e os que se encontram sob o apanágio da riqueza? Em verdade, eventual acesso desses últimos ao depósito não é aparente. Se o fosse, toda estrutura social desabaria como um prédio em ruínas. Sua incolumidade precisa restar demonstrada a bem da perpetuidade do ordenamento social.
Preleciona BECCARIA:
A quem dizer que a pena aplicada ao nobre, ao plebeu não é realmente a mesma em virtude da diversidade da educação e da infâmia que se derrama sobre uma ilustre família, responderei que não se medem as penas pela sensibilidade do réu, mas sim pelo dano público, tanto maior quando é ocasionado pelo mais favorecido.
Quanta razão tem o ilustre Mestre italiano, e quão infeliz ficaria diante do que se observa hodiernamente no Brasil!
Embora figurem em ações penais e sejam submetidos à execração pública pelos órgãos de imprensa, os indivíduos que corporificam a classe alta raramente confirmam, mediante eventual condenação, a proposição beccariana de que as penas são proporcionais aos delitos cometidos e aos danos ocasionados à Nação.
De quando em quando, porém, um desses indivíduos é sacrificado a bem da proteção jurídico-penal e, contrario sensu, a proporção beccariana crime-castigo se hiperdimensiona, numa demonstração de que a instituição permanece estável e o império da lei reina soberano acima de todos os indivíduos indistintamente; é quando toda miséria e toda infâmia recaem sobre um único indivíduo, como se ele sozinho fosse responsável pelos males que assolam o País como verdadeira endemia.
Concentremo-nos no problema da impunidade.
Não seriam as leis penais boas o bastante para consagrar o axioma de que "todos são iguais perante a lei"?
Certo é que, embora não se deva sacralizar as leis de direito material, maior carga de culpa reside nas leis processuais. Penso que dois fatores contribuem para a certeza dos destinatários das penas: o acesso à justiça e a lei processual penal.
Até o intelecto mais vulgar sabe que o acesso à justiça tanto mais se dá quanto é o prestígio social ou as possibilidades materiais que determinado indivíduo concentra. Traduz-se pela condição que tem de dispor de advogados de renome, a quem é atribuída insuspeita reputação. Profissionais que colocam a serviço do acusado não apenas um saber jurídico superior, mas também o que de mais moderno existe em termos jurídicos.
A questão da lei processual cinge-se à complexidade processualística, ao sem-número de possibilidades que oferece desde o início até o final do processo, fortalecido pelo princípio do contraditório e da ampla defesa que o diploma constitucional consagra.
Contudo, o princípio do contraditório e da ampla defesa não é objeto da nossa critica. Registrem-se, ao contrário, as enormes conquistas no plano dos direitos e garantias individuais da Carta de 1988, que asseguram ao réu defender-se de modo cabal antes de eventual condenação, máxime diante da realidade dantesca de nosso sistema prisional.
O que se pretende dizer é que a uns é oferecida ampla defesa, enquanto a outros resta uma defesa pífia que mais se assemelha à condenação antecipada.
Importa ainda fazer últimas considerações a respeito do contrato social.
A contratualidade opera no sentido precípuo de se alcançar segurança e liberdade, objetivos esses que se encontram delineados pela renúncia a porções das garantias individuais.
Toda vez que a impunidade prevalece em razão da posição privilegiada de um indivíduo, que não a alcançou por força de sua industriosidade, a crença da cláusula tácita que vincula os homens uns aos outros perde força e legitimidade.
Não se sabe, todavia, até que ponto resta ameaçado o pacto social no Brasil cujos cidadãos, capazes de ironizar a própria tragédia, pouco sabem acerca de nossa realidade.
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SOUZA, Marcus Valério Saavedra Guimarães de. Criminalidade e o pacto social
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